Introdução
A palavra coréia é derivada do latim choreus, que significa “dança”. É uma desordem do movimento hipercinética caracterizada por contrações musculares involuntárias breves, irregulares, aleatórias, frequentemente percebidas como uma “inquietude” por pacientes e observadores. Pode ter origem em doenças heredodegenerativas, danos estruturais a estruturas cerebrais profundas, doenças auto-imunes, desarranjos metabólicos, e ser secundária a fármacos e hormônios.
Este capítulo tem o objetivo de fornecer uma visão geral dos diversos tipos de coréia, com ênfase, em sua parte final, à doença de Huntington.
Histórico
As primeiras descrições parecem datar do século XIV, de uma manifestação que foi nomeada de “mania dançante epidêmica”. Também chamada de dança de São Vito, acredita-se que esta “dança coletiva”, na verdade, parecia se relacionar mais a uma manifestação histérica devido ao medo de contaminação pela peste negra. A primeira descrição médica reconhecida é de Thomas Sydeham (1624-1689), da coréia pós-infecciosa infantil.
A forma hereditária da coréia foi descrita pela primeira vez em 1842, por Walters, mas sua primeira descrição detalhada, incluindo a forma de transmissão genética, foi feita por George Huntington, em 1872, em East Hampton, Long Island, Nova Iorque. O relato foi publicado como um pequena comunicação no “The Medical and Surgical Reporter”.
Conceitos básicos
Para iniciar o estudo deste tipo de movimento anormal, é necessário diferenciar os conceitos de coréia, atetose e balismo. A coréia se apresenta como um distúrbio do movimento excessivo, com movimentos rápidos e imprevisíveis que afetam especialmente a porção distal dos membros superiores, mas também a face e o tronco. Os movimentos são involuntários, não estereotipados, com velocidade e direção variável e caracteristicamente fluem aleatoriamente de uma parte do corpo a outra. A característica que melhor permite diferenciá-la de outros movimentos hipercinéticos, como o tremor e a distonia, é a sua natureza imprevisível. A atetose se refere a movimentos mais lentos, sinuosos, de contorção, distais, dos membros, que persistem durante o sono. O termo coreoatetose é recorrentemente utilizado quando os dois movimentos coexistem. Balismo, por sua vez, se refere a movimentos involuntários caracteristicamente proximais e de grande amplitude, às vezes com um aspecto mais “violento”, associado a amplo deslocamento das extremidades. O balismo é, por vezes, descrito como um movimento em forma de “arremesso”.
Fisiopatologia da coréia
Com a descrição do modelo neurofisiológico das alças (loops) motoras, proposto na década de 1990, a partir de estudos em primatas, passamos a entender melhor como os circuitos dos núcleos da base, por vias paralelas, podem modular a atividade das projeções motoras tálamo-corticais e, consequentemente, facilitar os movimentos voluntários e/ou inibir movimentos excessivos ou desnecessários.
De acordo com este modelo, eferências GABAérgicas a partir do globo pálido interno (GPi) modulariam a atividade dos núcleos motores do tálamo. O tálamo, segundo esta teoria, teria a função de facilitar os movimentos por meio de uma via excitatória glutamatérgica direcionada às áreas motoras corticais (córtex pré-motor, motor primário e motor suplementar). O GPi, por sua vez, sofreria modulação por duas vias GABAérgicas paralelas estriato-palidais aferentes, que foram chamadas de vias direta e indireta. A Via Direta é assim chamada porque há uma projeção neuronal única em direção ao GPi, e a Via Indireta, por haver “subestações” sinápticas no globo pálido externo (GPe) e no núcleo subtalâmico (STN).
Várias causas de coréia poderiam ser explicadas pela existência uma eferência inibitória deficiente do GPi sobre o tálamo, resultando em facilitação tálamo-cortical excessiva, e, então, nos consequentes movimentos involuntários. Trata-se de um modelo interessante, porém ainda imperfeito, por não explicar situações como, por exemplo, a melhora obtida com a palidotomia sobre coréia induzida por levodopa na doença de Parkinson.
Atualmente, após estudos de micro-registro de neurônios dos gânglios da base, acredita-se que mudanças no padrão temporal e espacial de disparo do globo pálido interno sejam, na verdade, a explicação para os movimentos.
Classificação etiológica
As coréias são frequentemente classificadas em primárias (idiopáticas ou hereditárias) e secundárias (adquiridas), conforme a Tabela 1. De uma maneira geral, as coréias hereditárias tem uma tendência maior a se apresentar de maneira bilateral, além de serem insidiosas e progressiva. Enquanto isso, as adquiridas têm maior chance de se manifestar de modo agudo/subagudo e assimétrico, às vezes sendo exclusivamente unilateral. Caso a apresentação seja exclusivamente unilateral, é obrigatória a pesquisa de causa estrutural por meio de neuroimagem (ressonância magnética).
No entanto, os fenômenos clínicos, na maior parte das vezes, não distinguem a causa. Dessa forma, as características acompanhantes são frequentemente os fatores que determinam o diagnóstico etiológico.
TABELA 1 – Coréias primárias e secundárias
Coréias de origem primária ou genética
Coréias de origem secundária/adquirida
Autossômicas dominantes
- Coréia hereditária benigna
- Atrofia dentato-rubro-pálido-luisiana
- Doença de Huntington
- Doença Huntington-like tipos 1 e 2
- Calcificação idiopática dos núcleos da base (doença de Fahr)
- Neuroferritinopatias
-Coreoatetose cinesiogênica paroxística
- Discinesia paroxística não cinesiogênica
- Ataxia espinocerebelar (tipos 1, 2, 3 e 17)
Autossômicas recessivas
- Ataxia com apraxia óculo-motora tipos 1 e 2
- Ataxia-teleangiectasia
-Coreo-acantocitose
- Ataxia de Friedreich
- Doença Huntington-like tipo 3
- Lipofuscinose ceróide neuronal
- Neurodegeneração associada a pantotenato-quinase
- Porfiria
- Fenilcetonúria
- Doença de Wilson
Ligadas ao X
- Síndrome de McLeod
- Doença de Lesch Nyhan
Herança materna
-Doenças mitocondriais.
Auto-imune
- Síndrome do anticorpo anti-fosfolipídeo
- Doença de Behçet
- Encefalopatia de Hashimoto
- Poliarterite nodosa
- Angiíte primária do SNC
- Sarcoidose
- Coréia de Sydeham
- Lupus eritematoso sistêmico
- Paraneoplásica
Vascular
- Malformação arteriovenosa
- Hemorragia intraparenquimatosa
- AVC isquêmico
- Doença de Moya-Moya
- Hemorragia subaracnóidea
Fármacos
-Drogas dopaminérgicas
- Outros (discutidas em capítulo específico)
Infecções
- HIV
- Doença de Creutzfeldt-Jakob
- Difteria
-Encefalite/meningite
- Doença do legionário
- Doença de Lyme
- Malária
- Neurocisticercose
- Neurosífilis
- Leucoencefalopatia multifocal progressiva
Metabólicas
- Insuficiência hepática
- Insuficiência renal
- Hipertireoidismo
- Distúrbios da homeostase iônica (cálcio, sódio, magnésio)
- Hipoparatireoidismo
- Hipo/Hiperglicemia
- Chorea gravidarum (induzida pela gestação)
- Pseudohipoparatireoidismo
- Deficiência vitamínica (B1, B12, Niacina)
Tóxica
-Intoxicação ou abstinência alcoólica
-Intoxicação por:
--Monóxido de carbono
--Manganês
--Mercúrio
--Tálio
--Tolueno
-Inalação de cola
Neoplásica
Coréia edentulosa
Kernicterus
Coréia fisiológica da infância
Coréia senil
Fenomenologia/Semiologia
Em geral a coréia está presente no repouso, podendo se exacerbar com manobras de distração (como a subtração seriada de 7 do Mini-exame do Estado Mental). Desaparece no sono.
É frequentemente notada a impersistência motora, definida como uma incapacidade de manter uma contração muscular sustentada. Este sinal geralmente é avaliado solicitando ao paciente que faça a protrusão da língua para fora da boca por 30 segundos (o paciente não consegue realizar esta manobra, pois a língua retorna involuntariamente para a cavidade oral), ou que segure a mão do examinador pelo mesmo período, notando-se movimento involuntários semelhantes a uma ordenha (este sinal é chamado de “milk maid grip”).
A coréia caracteristicamente acompanha hipotonia global, que pode ser pesquisada ao sacudir os ombros de um paciente em posição ortostática e observar movimentos excessivamente amplos dos braços (como um boneco “mamulengo” pernambucano).
Pode ser produzida, ao exame físico, uma forma peculiar de reflexo osteotendíneo profundo chamado de “hung-up knee jerk”. Este reflexo é costumeiramente observado à percussão do tendão patelar com um martelo, e trata-se de uma resposta de latência longa, atribuída a um movimento coréico superposto ao reflexo patelar. Os reflexos também podem ser pendulares, o que se justifica pela hipotonia apendicular.
Paracinesia paradoxal
O fluxo contínuo de movimentos involuntários coreicos pode, eventualmente, se misturar a movimentos voluntários, sendo difícil diferenciá-los. Quando o paciente tenta “esconder” os movimentos excessivos, incorporando a eles comportamentos voluntários, dá-se o que chamamos de paracinesia paradoxal.
Etiologias específicas de coréia
Abaixo serão discutidas, dentre as doenças causadoras de coréia, as de maior importância epidemiológica, clínica e didática. Não há a pretensão de esgotar o assunto, motivo pelo qual o leitor é estimulado a recorrer às referência bibliográficas ao final do capítulo.
Causas genéticas
Dentro do grupo das coréias de origem genética, podem ser incluídas doenças de fisiopatologias bastante diversas, mas com um denominador fenomenológico comum. Entre elas, destaca-se a coréia de Huntington, devido à sua maior frequência, porém merecem citação as síndromes Huntington-like, as neuroacantocitoses, a atrofia dentatorubropalidoluysiana, a coréia benigna hereditária, as ataxias espinocerebelares tipo 2, 3 (doença de Machado Joseph) e 17 (Síndrome Huntington Like tipo 4).
Alguns tipos de ataxias de origem hereditária também podem cursas com coréia, como: ataxia de Friedreich, ataxia-teleangiectasia e ataxia-apraxia oculomotora tipos 1 e 2.
Doenças genéticas que cursam com acúmulo de metais nos núcleos da base, que serão discutidas em capítulo a parte, como a doença de Wilson, a neurodegeneração com acúmulo cerebral de ferro (especialmente a Degeneração associada a Pantotenato-quinase tipo 2) e as neuroferritinopatias.
Coreia de Sydeham
Esta é a causa mais comum de coreia de início na infância. É uma das manifestações da febre reumática, uma sequela não supurativa de infecção por Streptococcus do grupo A. Acredita-se que sua fisiopatologia seja explicada pela reatividade antigênica cruzada entre anticorpos contra o estreptococo, que passam a também reconhecer antígenos no corpo estriado. Em geral, ocorre em crianças entre 5 e 15 anos de idade (sendo 2x mais frequente no sexo feminino), e costuma ser tardia, com manifestação iniciada 4 a 8 semanas após a infecção. Há relatos, no entanto, de latência de até 8 meses entre a infecção e o início da coréia.
Geralmente de instalação subaguda e bilateral, pode ser unilateral em até 30% dos casos. Tiques, fraqueza muscular, vocalizações, hipotonia e disartria são manifestações neurológicas co-mórbidas comuns. Com frequência precedem o início da coréia sintomas comportamentais/psiquiátricos, como labilidade emocional, desatenção, irritabilidade, hiperatividade, sintomas obsessivo-compulsivos, ansiedade, psicose e depressão. O episódio de coréia dura, em média, de 2 a 9 meses, quando obtém-se remissão. Há pouca utilidade do uso do anticorpo anti-estreptolisina O no diagnóstico, por baixa sensibilidade a longo prazo, sendo mais interessante a pesquisa da anti-DNAse B. Profilaxia com penicilina benzatina a cada 21 dias é recomendada até o ínicio da idade adulta.
A avaliação clínica da gravidade da coréia pode ser realizada por meio da escala de avaliação de coréia de Sydeham da Universidade Federal de Minas Gerais, desenvolvida por Francisco Cardoso e colaboradores.
Hemicoreia-hemibalismo
A hemicoréia-hemibalismo tem como causa mais comum a hiperglicemia não cetótica, também chamada de estado hiperosmolar hiperglicêmico não cetótico. Nota-se, caracteristicamente, na RM de encéfalo, a presença de hipersinal unilateral na sequência T1, no corpo estriado contralateral à coréia. Em geral, este hipersinal desaparece meses após a melhora clínica. Como o próprio nome já diz, há marcada assimetria na apresentação clínica: os movimentos excessivos ocorrem somente em um dimidio. O mecanismo parece estar relacionado a lesões microvasculares e depleção de GABA e acetilcolina no putamen.
Além da coréia, o quadro pode cursar com asterixis (mioclonias negativas), alteração do estado da consciência e com crises epilépticas.
O diagnóstico diferencial deve ser feito com outras doenças que alteram o sinal dos núcleos da base, como doença de Wilson, calcificações idiopáticas dos núcleos da base, hemorragias hipertensivas.
A principal medida para seu tratamento é a correção dos níveis glicêmicos. Fármacos anti-dopaminérgicos bloqueadores de receptor D2, como os neurolépticos típicos, e depletores de dopamina (inibidores da fusão da vesícula sináptica), como os inibidores da VMAT tetrabenazina e reserpina, também podem ser úteis.
Chorea gravidarum (e induzida por anticoncepcionais)
Coréia de qualquer causa de início na gravidez recebe a denominação de chorea gravidarum. Causas muito frequentes são a exacerbação de coréia de Sydeham no passado e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo. Geralmente tem início entre o 2º e 5º mês da gestação, mas pode ocorrer eventualmente também após o parto. Uso de corticoesteróides e uso cuidadoso de haloperidol são alternativas de tratamento.
Coreia senil
O termo se refere à coreia de início gradual, topografia generalizada, simétrica, com lenta progressão, em pacientes que não tenham distúrbios de comportamento, cognição ou história familiar positiva (fatores reconhecidamente presentes na doença de Huntington, por exemplo). O início se dá após os 50 anos de idade e é sempre recomendada a testagem genética para se descartar uma coréia hereditária com apresentação atípica. É importante que seja esclarecido o histórico de uso de medicações. O diagnóstico deve ser considerado somente se as outras potenciais causas forem excluídas (vascular, auto-imune, tóxico-metabólica, infecciosa etc).
Neuroacantocitoses
Neuroacantocitose é um nome genérico dado a síndromes caracterizadas por sintomas neurológicos e presença de hemácias espiculadas no sangue periférico (acantócitos). São divididas em dois grupos, segundo Jung et al: um grupo central, em que coincidem manifestações como degeneração dos núcleos da base, sintomas cognitivos/comportamentais (padrão frontal-subcortical) e distúrbios do movimento; e um grupo relacionado ao metabolismo das lipoproteínas.
No primeiro grupo (“central”), são incluídas doenças como a Coreoacantocitose , a Síndrome de McLeod, a degeneração cerebral associada à mutação da pantotenato cinase tipo 2 (antiga doença de Hallervorden Spatz) e a doença Huntington Like tipo 2. No segundo grupo, do metabolismo de lipoproteínas, se incluem a abetalipoproteinemia e a hipobetalipoproteinemia.
Descreveremos suncitamente, a seguir, as principais características dessas raras condições, com as quais o neurologista deve se familiarizar.
Coreo-acantocitose
Trata-se de doença autossômica recessiva rara, secundária a mutação no gene VPS13A. Tem características bastante peculiares: se inicia entre os 25 e 45 anos, manifestando-se com discinesias bucolinguais, protusão involuntária da língua (“distonia alimentar”), mutilações da boca e lábios, coréia generalizada e neuropatia periférica. A maior parte dos casos tem acantócitos no esfregaço de sangue periférico e aumento de níveis de creatino fosfoquinase (CPK). O teste confirmatório é molecular e envolve a identificação queda da expressão da proteína coreína.
O tratamento é sintomático e envolve o uso de bloqueadores de dopamina (neurolépticos). A doença, lamentavelmente, é progressiva e diminui a expectativa de vida.
Síndrome de McLeod
Doença genética recessiva ligada ao X, frequentemente se manifesta com coreia e tiques cranio-faciais. Eventualmente se associa com distonia. É muito comum sua associação com uma polineuropatia axonal (com arreflexia), além de quadro cognitivo, demencial, subcortical, com distúrbios do comportamento, além de cardiomiopatia (com arritmias malignas, fibrilação atrial) e anemia hemolítica com acantocitose, na ausência de abetalipoproteinemia. Seu fenótipo é consequente de uma mutação no gene XK, no locus Xp21.1, que determina ausência do antígeno eritrocitário Kx, com fraca expressão do antígeno Kell. É comum a presença de aumento nos níveis séricos da creatina quinase (CK). Foi descrita em 1961 em um paciente com este sobrenome, que acabou nomeando a doença.
Síndrome de Lesch-Nyhan
Desordem hereditária do metabolismo das purinas, a Síndrome de Lesch Nyhan é causada pela deficiência da enzima hipoxantina-guanina fosforibosiltransferase (HPRT). O grave quadro clínico se caracteriza pela tríade: hiperprodução de ácido úrico, distúrbios comportamentais e neurológicos. A mutação causadora da doença se encontra no gene HPRT1 (cromossomo X, locus Xq26), e a herança é recessiva ligada ao X. O quadro de distúrbio do movimento pode incluir distonia, espasticidade, coreoatetose, balismo disartria e disfagia. Geralmente os distúrbios comportamentais se manifestam como agressividade física e verbal e auto-mutilação obsessiva, com lesões labiais e nos dedos secundárias a mordedura.
A suspeita diagnóstico geralmente é feita na infância, com o achado de atraso psicomotor associado a hiperuricemia. O diagnóstico pode ser molecular, com a identificação da mutação, porém um teste muito útil é a pesquisa da atividade da HPRT no sangue periférico ou em fibroblastos.
Estudos de neuroimagem, como tomografia computadorizada e ressonância magnética, não revelam manifestações específicas.
O tratamento é limitado e sintomático. Usa-se alopurinol para o controle dos níveis de ácido úrico (e redução do risco de gota e nefropatia), e medicações como o baclofeno e benzodiazepínicos, por exemplo, para o controle dos fenômenos distônicos.
Lúpus eritematoso sistêmico (LES) – Coréia lúpica
Como doença multi-orgânica, o LES também é chamado de “o grande imitador”. Seu marcador sorológico é a presença de anticorpos anti-nucleares e, mais especificamente, de anticorpos anti-DNA dupla fita (anti-ds-DNA). Apesar de poder causar as mais variadas manifestações neurológicas, como vasculite, neurite óptica, polirradiculopatia desmielinizante aguda, crises convulsivas e psicose, o LES também pode manifestar-se com transtornos do movimento.
A coréia lúpica é um desafio diagnóstico e deve sempre ser lembrada, nos casos menos óbvios. Pode se manifestar de maneira generalizada ou como hemicoréia, em até 3% dos casos. É necessária a presença de, pelo menos, 4 de 11 critérios do Colégio Americano de Reumatologia, para o diagnóstico definitivo.
O tratamento da coréia costumeiramente é realizado com corticoesteróides ou com neurolépticos típicos. Há algumas descrições na literatura do uso de imunoglobulina endovenosa e de plasmaférese, com alívio dos sintomas.
Coréia Benigna Hereditária
Doença rara, de origem autossômica dominante, é causada por mutações no gene TITF1 (cromossoma 14, locus 14q13.3), um gene sabidamente relacionado a fatores de transcrição essenciais para a embriogênese dos núcleos da base, dos pulmões e da tireóide. A presença desta mutação foi identificada nos anos 2002/2003, por Breedveld et al e Kleiner-Fishman et al.
Os movimentos coreiformes, nesta condição, se iniciam na infância, e não acompanham qualquer problema cognitivo. A evolução é lenta, e pode acompanhar distonia, mioclonia, disartria. O prognóstico, acredita-se, é relativamente benigno.
Doença de Huntington
A doença de Huntington é uma doença neurodegenerativa de causa genética. Herdada de maneira autossômica dominante, tem como causa uma mutação no cromossomo 4, na região 4p16, no gene IT15, que codifica a proteína Huntingtina. A mutação causadora da doença é do subtipo repetição de trinucleotídeos CAG, que resulta na expressão de uma cauda anormal de múltiplos aminoácidos tipo glutamina na proteína huntingtina.
É forma mais frequente de coréia genética conhecida. Estima-se que possam haver de 8 a 20 mil pessoas no Brasil, dado que vem de uma extrapolação de dados mundiais que sugerem prevalência de 4 a 10 pacientes a cada 100 mil pessoas.
Dados epidemiológicos mostram maior frequência em populações com origem étnica na Europa ocidental. Há, no entanto, na América do Sul, uma região onde se encontra a maior prevalência do mundo, nas margens do Lago Maracaibo, na Venezuela. Os principais estudos de descrição de pedigrees, incluindo aquele que identificou o gene responsável pela doença, publicado em 1993, foram feitos a partir dos dados genéticos de famílias venezuelanas, fruto de colaborações científicas internacionais.
O quadro clínico se caracteriza por uma tríade clássica: transtorno de movimento, desordem de comportamento e declínio cognitivo.
No espectro dos transtornos do movimento, o mais encontrado, sendo considerado prototípico, é a coréia. No entanto, outras manifestações são comuns, como parkinsonismo, distonia, ataxia, tiques (tourettismo) e mioclonias. Nas fases mais avançadas, podem evoluir com espasticidade, disartria e disfagia, sintomas que influenciam bastante a morbimortalidade, em virtude da síndrome de imobilidade e do risco de pneumonia aspirativa. Marcha de base alargada, coréia axial e ataxia podem levar a quedas, outra importante causa de morbidade, devido ao risco de traumatismo crânio-encefálico.
A apresentação rígido-acinética, ou seja, com predomínio de sintomas parkinsonianos, é comum na doença de início precoce, ou forma Westphal da doença de Huntington. Nesta forma, sabidamente há um maior número de repetições CAG.
As desordens de comportamento são universais na doença de Huntington. Até 40% dos pacientes apresentam sintomas de depressão maior, frequentemente com ideação suicida. Estudos tem mostrado que suicídio pode representar até 8% das mortes na doença.
Outros sintomas psiquiátricos, como ansiedade, ataques de pânico, transtorno obsessivo compulsivo, mania/hipomania, psicose, irritabilidade, agressividade, hiperssexualidade a apatia, também são muito frequentes e merecem manejo individualizado. Sabe-se que estes sintomas podem preceder os sintomas motores em anos ou mesmo décadas.
O declínio cognitivo é também universal, e o quadro demencial clinicamente se apresenta com padrão frontal-subcortical, com lentificação do raciocínio, prejuízo sobre funções executivas (organização, planejamento e resolução de problemas) e do controle inibitório e dos impulsos.
Com o avançar da doença, aumentam os riscos de mortalidade por (1) imobilidade (trombose venosa profunda, infecções respiratórias e urinárias); (2) quedas (hematoma subdural, fraturas) e (3) disfagia (pneumonia aspirativa.
O diagnóstico é feito associando-se quadro clínico clássico e presença da mutação. A história familiar positiva (diagnóstico confirmado em parente de primeiro grau), associada à síndrome clínica clássica também pode ser suficiente para o diagnóstico.
No teste diagnóstico molecular é realizada a quantificação do número de repetições do códon CAG, e são possíveis 4 situações clínicas, descritas a seguir na tabela 2. Sabe-se que háuma relação inversa entre o número de repetições e a idade de início da doença, ou seja, quanto mais repetições CAG o gene apresentar, mais precocemente a doença se manifesta. A forma Westphal, por exemplo, costumeiramente se apresenta em pacientes com mais de 60 repetições.
Tabela 2 – Diagnóstico molecular da doença de Huntington
Resultado do teste genético (número de repetições CAG no gene IT5)
< 27 repetições
Gene normal
27-35 repetições
Alelo intermediário, não manifesta a doença, porém carrega risco de transmissão
36-39 repetições
Gene alterado, causa manifestações clínicas, porém não em todos os casos (penetrância incompleta)
Mais que 39 repetições
Doença de Huntington (penetrância completa)
A imagem por ressonância magnética pode dar suporte ao diagnóstico, funcionando como um biomarcador, com boa resolução espacial e maior contraste.
Em secções coronais do lobo frontal, é possível identificar grave atrofia do caudado. Esta atrofia pode ser quantificada por meio de 2 índices: (a) razão entre a largura dos cornos anteriores e distância intercaudados; e (b) razão entre a distância intercaudados e largura da tábua óssea interna.
Nas formas juvenis, é comum se encontrar, além da atrofia dos caudados, importante atrofia do putamen, com hipersinal T2.
As técnicas quantitativas podem ter algum valor diagnóstico: espectroscopia de prótons mostra aumento de lactato no córtex occipital e queda na razão NAA/creatina (perda neuronal) nos núcleos da base.
Síndromes Huntington-like
Huntington like tipo 1
Trata-se de doença priônica familiar, causada por uma mutação que insere 8 repetições extra de octapeptídeos no gene PRNP, localizado no cromossoma 20p13. Também de herança autossômica dominante, pode se manifestar de maneira indistinta da doença de Huntington, com coréia, ataxia, demência e alterações psiquiátricas (agressividade, ansiedade, depressão, delírios). Há atrofia cerebral difusa, com perda celular nos núcleos da base, espongiose e placas fibrilares no córtex cerebral. Oinício das manifestações se dá, em média, aos 28 anos de idade.
Huntington like tipo 2
Causada por mutação no gene da junctofilina-3, localizado no cromossoma 16q24, a doença Huntington-like tipo 2 é provocada também por expansão de trinucleotídeos (CAG/CTG), heterozigota, e de manifestação autossômica dominante. Mais comum em famílias de origem africana, é a mais encontrada das síndromes Huntington like no Brasil, provavelmente em virtude da grande representatividade desta etnia na população brasileira (Guilherme Rodrigues, 2008 Santos C) . A toxicidade da proteína mutada parece estar relacionada com ganho patológico de função mediado por RNA. A família original (família W), descrita por Margolis e cols, em 2001, se caracterizada por indivíduos com início da doença na 4a década de vida, com movimentos involuntários, sintomas psiquiátricos, perda de peso, demência e curso fatal em cerca de 20 anos de duração da doença.
Huntington like tipo 3
Ao contrário das duas primeiras, esta síndrome Huntington like tem origem provavelmente autossômica recessiva, e início em idade mais jovem (crianças de 3 a 5 anos de idade), com fenótipo que lembra a forma Westphal da Doença de Huntington. Pode se manifestar com sinais piramidais e extrapiramidais, coréia, distonia, ataxia, espasticidade, instabilidade de marcha, distúrbios de fala, crises epilépticas, deterioração mental, com atrofia frontal e dos caudados. A primeira descrição é de uma família saudita, com histórico de consangüinidade (casamento entre primos), e foi feita por Al-Tahan, em 1999. Há associação em estudos tipo linkage, com o cromossoma 4p15.3, o que ainda é incerto. Alguns autores consideram que, em virtude do padrão de herança diferente, e da manifestação muito precoce, não deveria estar classificada dentro das síndromes Huntington-like.
Huntington like tipo 4 (SCA 17)
Classificada como a ataxia espinocerebelar tipo 17 (SCA17), esta é uma doença genética autossômica dominante, associada a repetição de trinucleotídeos no gene TBP (TATA box binding protein), no cromossoma 6q27. Com idade de início entre 19 e 48 anos, tem a ataxia como principal manifestação (94% dos casos), e apresenta fenótipo heterogêneo, com sinais extrapiramidais, piramidais, demência, epilepsia, e transtornos psiquiátricos associados. Na patologia, se encontram corpos de inclusão difusamente distribuídos na substância cinzenta, com imunorreatividade antiTBP e anti-poliglutamina.
ATROFIA DENTATO-RUBRO-PÁLIDO-LOUISIANA (DRPLA)
Mais um exemplo de doença causada por mutação do tipo repetição de trinucleotídeos CAG no gene ATN1 (cromossoma 12p13.31 - atrofina 1), de herança autossômica dominante, a atrofia dentato-rubro-pálido-louisiana tem apresentação fenotípica heterogênea. Mais comum em pacientes de etnia oriental (japonesa), se manifesta com epilepsia mioclônica, ataxia, demência e coreoatetose. Na transmissão gênica também se demonstra o fenômeno da antecipação, como na doença de Huntington, com expansão de cerca de 4 repetições na transmissão paterna. Indivíduos com 49-88 repetições expressam a doença, enquanto aqueles com 8 a 25, não. A cauda de poliglutamina da proteína mutada parece interagir com a enzima gliceraldeído trifosfato deaminase (GAPD). A idade média de início parece ser ao reder da terceira década, apesar de relatos de grande variabilidade (da primeira à sétima década).
O espectro fenotípico variável foi classificado em 3 apresentações mais típicas, a partir da principal manifestação: predominantemente (a) coréica, (b) atáxica e (c) mioclônica.
Abordagem prática
É de grande utilidade que a primeira medida a ser tomada ao se deparar com um paciente com coréia seja se informar a respeito da presença de história familiar, diferenciando, logo no início da entrevista, as coréias de origem genética daquelas adquiridas. História de infecção estreptocócica recente é muito importante no contexto de uma criança com movimentos coreicos, já que pode ser suficiente para o diagnóstico de coréia de Sydeham.
Caso a história familiar sugira uma herança autossômica dominante, a primeira hipótese diagnóstica deve ser doença de Huntington, o que torna o teste genético imprescindível. Fatores acompanhantes, como a presença de auto-mutilação, podem direcionar o diagnóstico para as neuroacantocitoses ou síndrome de Lesch Nyhan.
Na coréia estritamente unilateral, acompanhada de movimentos balísticos, é necessária a coleta de glicemia e, se normal, o exame de neuroimagem, para se descartar uma causa vascular.