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Ataxias - anatomia e fisiologia do cerebelo

Introdução


Ataxia tem origem etimológica na língua grega, tendo o prefixo a- significado de "negação" ou "ausência de", e o radical -táxis de "ordem". Ataxia, portanto, é palavra que denota "falta de ordem ou coordenação". Não é em si uma doença e, sim, um sintoma neurológico.

De fato, segundo Anita Harding (1996), grande estudiosa das ataxias hereditárias, a ataxia se refere a uma "decomposição do ajuste fino da postura e dos movimentos, normalmente controlados pelo cerebelo e suas conexões, aplicando-se à função motora dos membros, tronco, olhos e musculatura bulbar".

Ataxia pode ser causada por disfunção em mais de um sistema. Os sistemas cerebelar, proprioceptivo e/ou vestibular são os habituais geradores deste sintoma. Cabe ao neurologista, com acurácia, diferenciar a topografia da lesão a partir dos achados de história e exame físico. Este capítulo visa introduzir este tema, com uma abordagem simplificada, baseada em neuroanatomia e semiótica.


ANATOMIA E FISIOLOGIA DA COORDENAÇÃO MOTORA E CIRCUITOS CEREBELARES


Função cerebelar


A função cerebelar, na fisiologia do controle motor, envolve comparação entre intenção e ação ― e a consequente geração de sinais corretivos para o sistema motor. O cerebelo está intimamente relacionado à aprendizagem motora e à adaptação de comportamentos motores, automatizando e otimizando o movimento. Há também descrições de relações do cerebelo com funções não motoras, cognitivas.

O cerebelo realiza esta função comparativa entre intenção e ação ao confrontar o sinal de planejamento motor recebido do córtex motor com os sinais sensoriais somáticos aferentes, provenientes da medula e sistema nervoso periférico. Conecta-se, em feedback, com as áreas motoras associativas, como os córtices pré-motor e motor suplementar, incorporando informações aos programas motores gerados nessas áreas.

Diversos autores sugerem que outra função primordial do cerebelo seja promover movimentos sinérgicos, coordenados e suaves, por meio do ajuste do timing de ativação dos músculos agonistas e antagonistas.

Lesões cerebelares, portanto, produzem incoordenação e erros não associados a fraqueza, além de perda da capacidade de antecipar e corrigir erros (de alvo ou trajetória motora).


Divisão anatômica e funcional do cerebelo


O cerebelo é dividido, anatomicamente, em três lobos: lobo anterior, lobo posterior e lobo flóculo-nodular. O lobo anterior e posterior são separados pela fissura primária, enquanto a fissura postero-lateral divide os lobos floculonodular e posterior. Além disso, há dois hemisférios cerebelares, simétricos, e a região vermiana (ou verme cerebelar), na linha média. Esta divisão anatômica, no entanto, não se correlaciona necessariamente com a função, e, por este motivo, foi proposta uma classificação funcional, baseada na filogenética e na conexão do córtex cerebelar com os núcleos profundos.

Também chamado de "árvore da vida", em virtude de sua aparência no corte seccional, o cerebelo possui um córtex extremamente dobrado, formando as chamadas folias. Apesar de representar apenas 10% do peso do encéfalo, possui cerca de 50% de seus neurônios.

Funcionamente, o cerebelo divide-se em (1) cerebrocerebelo, (2) vestibulocerebelo e (3) espinocerebelo.

O cerebrocerebelo se relaciona ao planejamento motor, e é representado pelas porções laterais dos hemisférios cerebelares. Provê a coordenação de movimentos independentes dos membros, de maior destreza, determinando o controle dos chamados "movimentos pré-programados".

O espinocerebelo é a região funcional responsável pela execução de controle da coordenação de membros (proximal) e tronco (postura), e inclui a região vermiana e a intermédia dos hemisférios cerebelares. Compartilha, em parte, com o cerebrocerebelo, a função de "atualização" dos movimentos em curso.

O vestibulocerebelo, por sua vez, localizado no lobo flóculo-nodular, é responsável pelo controle de movimentos óculo-cefálicos e pelo equilíbrio.

Filogeneticamente, a subdivisão vestibulocerebelar (arquicerebelo) é a mais antiga, sendo o espinocerebelo (paleocerebelo) intermediário em idade evolutiva, sendo identificado pela primeira vez em anfíbios, e o cerebrocerebelo (neocerebelo) a região mais recente, de aparecimento nos mamíferos.



Figura - Divisões anatômicas e funcionais do cerebelo


Conexão do córtex cerebelar e núcleos profundos


O cerebelo consiste em uma região cortical de substância cinzenta e um centro profundo de substância branca, além de quatro núcleos profundos de substância cinzenta, de cada lado.

O córtex da região do verme é funcionalmente conectado aos núcleos fastigiais, e projeta ao sistema ventro-medial (núcleos vestibulares e formação reticular). Recebe aferentes vestibulares, somatossensoriais proximais, auditivos e visuais.

O córtex da região intermédia (também chamada paravermiana) se conecta aos núcleos interpostos, ou seja, ao conjunto dos núcleos emboliforme e globoso, e projeta sua eferência ao sistema lateral, especialmente ao núcleo rubro contralateral. Suas aferências são semelhantes àquelas da região vermiana.

Já o córtex da porção lateral dos hemisférios cerebelares tem nos núcleos denteados a sua via de saída, projetando, via pedúnculo cerebelar superior, às áreas motoras frontais, passando pelo núcleo rubro e núcleo ventrolateral do tálamo. Sua via aferente provêm do córtex cerebral, via núcleos pontinos, no trato cortico-ponto-cerebelar.

O vestibulo-cerebelo, via lobo flóculo-nodular, projeta aos núcleos vestibulares, e, dessa maneira, exerce influência sobre o trato vestibulo-espinhal. Também se conecta a neurônios reticuloespinhais. Dessa forma, mostra-se sua intensa interconexão com a via ventro-medial.



Figura 5.2 - Papel do cerebrocerebelo no planejamento e programação do movimento e do espinocerebelo na comparação entre intenção e ação a partir do feedback sensorial


Conexão do córtex cerebelar e núcleos profundos


O cerebelo consiste em uma região cortical de substância cinzenta e um centro profundo de substância branca, além de quatro núcleos profundos de substância cinzenta, de cada lado.

O córtex da região do verme é funcionalmente conectado aos núcleos fastigiais, e projeta ao sistema ventro-medial (núcleos vestibulares e formação reticular). Recebe aferentes vestibulares, somatossensoriais proximais, auditivos e visuais.

O córtex da região intermédia (também chamada paravermiana) se conecta aos núcleos interpostos, ou seja, ao conjunto dos núcleos emboliforme e globoso, e projeta sua eferência ao sistema lateral, especialmente ao núcleo rubro contralateral. Suas aferências são semelhantes àquelas da região vermiana.

Já o córtex da porção lateral dos hemisférios cerebelares tem nos núcleos denteados a sua via de saída, projetando, via pedúnculo cerebelar superior, às áreas motoras frontais, passando pelo núcleo rubro e núcleo ventrolateral do tálamo. Sua via aferente provêm do córtex cerebral, via núcleos pontinos, no trato cortico-ponto-cerebelar.

O vestibulo-cerebelo, via lobo flóculo-nodular, projeta aos núcleos vestibulares, e, dessa maneira, exerce influência sobre o trato vestibulo-espinhal. Também se conecta a neurônios reticuloespinhais. Dessa forma, mostra-se sua intensa interconexão com a via ventro-medial.


Pedúnculos cerebelares


Os pedúnculos cerebelares são três feixes de fibras que carreiam informação aferente e/ou eferente. Dividem-se em pedúnculo cerebelar superior (braço conjuntivo), médio (braço da ponte), e inferior (corpo restiforme). As aferências são habitualmente ipsilaterais, via pedúnculo cerebelar médio e inferior. As eferências também são habitualmente ipsilaterais ao lado do corpo controlado. Apesar de envolver o núcleo rubro contralateral, o trato rubroespinhal imediatamente cruza a linha média, logo após a saída do núcleo.

O cerebelo recebe suas aferências mais relevantes essencialmente de três fontes: tratos espinocerebelares, fibras pontocerebelares e fibras olivocerebelares.


Microcircuito e histologia cerebelar


O cerebelo possui uma microestrutura persistentemente repetitiva, sob o ponto de vista de circuitos celulares e histológicos. O seu córtex é dividido em camadas, e tem a seguinte ordenação, iniciando das regiões mais externas às mais internas: (a) camada molecular, (b) camada de células de Purkinje e (c) camada granular.

Na camada molecular, imediatamente interna à pia-máter, se encontram as extensas arborizações dendríticas das células de Purkinje, além de dois grupos de interneurônios: as células em cesto e as células estreladas, mais superficiais. As chamadas fibras paralelas, que consistem em axônios não mielinizados provenientes da camada granular, também preenchem esta camada.

Na camada de células de Purkinje, como o próprio nome já diz, se encontram um grupo de células de grande tamanho, em formato de pêra, que representa importante porção da unidade funcional eferente cerebelar. Seus axônios projetam à substância branca cerebelar, em direção aos núcleos profundos, e têm função exclusivamente inibitória.

A camada granular contém as pequenas células granulares, as células de Golgi tipo II, e os glomérulos, que consistem em regiões de conexão sináptica entre os axônios que chegam ao cerebelo e as células granulares.

Os axônios das células granulares se estendem até a camada molecular, onde fazem sinapse com os dendritos das células de Purkinje e com as células em cesto. Estas fibras paralelas são assim chamadas por se apresentarem de modo paralelo ao eixo longitudinal das folias cerebelares.



Fibras musgosas e trepadeiras


As fibras musgosas são fibras que, ao realizarem sinapse com as células granulares, se apresentam sob a forma de tufo. São projeção excitatórias: cada fibra musgosa se relaciona a centenas de células granulares. Tem origem nos núcleos pontinos, medula espinhal, formação reticular do tronco e núcleos vestibulares.

As fibras trepadeiras originam-se exclusivamente nos núcleos olivares inferiores, e são projeções excitatórias aos núcleos profundos e às células de Purkinje. Seus axônios sobem e se enrolam nos dendritos das células de Purkinje, como uma videira ou parreira. Cada célula de Purkinje recebe aferência de apenas uma fibra trepadeira. Cada fibra trepadeira projeta para até 10 células de Purkinje, com até 300 sinapses por célula. Seu papel parece ser intimamente relacionado à aprendizagem motora, já que a sua frequência de disparo aumenta especialmente quando o sujeito é exposto a uma carga inesperada durante um movimento. Uma vez que o sujeito se adapte a esta carga, ou seja, aprenda o novo movimento, a frequência de descargas complexas retorna ao basal.



Figura 5.3 - Fluxograma de aferência e eferência cerebelares, e suas relações com os núcleos profundos e pedúnculos cerebelares.


VASCULARIZAÇÃO ARTERIAL DO CEREBELO


O cerebelo recebe irrigação arterial de três artérias, descritas abaixo:


1. artéria cerebelar superior


De origem próxima ao topo da basilar, tem trajeto inferior ao nervo oculomotor, e ao redor do pedúnculo cerebral, de onde chega à superfície superior do cerebelo. Supre tipicamente toda a superfície superior dos hemisférios cerebelares, até a fissura horizontal, o verme superior, núcleo denteado, boa parte da substância branca cerebelar e parte do mesencéfalo.


2. artéria cerebelar anterior inferior


De origem na artéria basilar, na transição bulbo-pontina, dá origem à artéria labiríntica, e tem um curso variável, as vezes se anastomosando a outra artérias. O tecido irrigado por esta artéria varia, porém geralmente inclui o pedúnculo cerebelar médio, a porção infero-lateral da ponte, o flóculo, e a superfície anterior e inferior do cerebelo. Também dá origem à artéria labiríntica, que irriga o ouvido interno.


3. artéria cerebelar posterior inferior


É uma das artérias mais variáveis em curso e origem, além de tipicamente tortuosa. Sua origem habitual é nas artérias vertebrais, porém também pode advir de localização extracraniana, da basilar, ou ser ausente. Seu território de suprimento, por este motivo, também é variável, e pode incluir, as tonsilas cerebelares, os lóbulos biventrais, o núcleo grácil (no bulbo), o lóbulo semilunar superior, a porção inferior do verme e o bulbo caudal.



 
 

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